Desde
pequenos ouvimos que quem tem um carro possui, de alguma forma, uma arma;
quando ficamos mais velhos, esse discurso começa a ser reiterado pelos pais,
preocupados não só com a integridade física e moral de seus filhos, mas com a
das possíveis vítimas. E de fato somos em algum sentido obrigados a concordar,
se levarmos em conta as atrocidades que podem ser cometidas por quem dirige.
Cotidianamente presenciamos discussões de trânsito devido a alguma
“barbeiragem” de algum motorista. Elas podem incluir desde um avanço de sinal
até uma ultrapassagem mal feita. É difícil saber se são cometidas por pessoas
que simplesmente pagaram por sua carteira de habilitação, ou ainda por pessoas
que acreditaram sair da autoescola sabendo dirigir, ou ainda pior, por pessoas
que nem mesmo a carteira possuem.
Acidentes acontecem todos os dias e
infelizmente também todos os dias os mesmos geram vítimas. O grande problema é
quando somente uma causa é atribuída a essa questão. A incontrolável
necessidade da sociedade em geral, com ênfase na grande mídia, de procurar
incessantemente por culpados para cada folha que cai no chão ganha agora os
acidentes de trânsito. O culpado da vez: o álcool. O álcool que é responsável
por todas as irresponsabilidades cometidas pelos motoristas do Brasil. A partir
dessa premissa dita inquestionável, nega-se ou pelo menos se omite todos os
outros culpados (se é que se pode usar diretamente essa palavra) pelos tais
acidentes.
Uma causa natural que quase não é
citada é a distração. A distração que pode ser dada de diversas maneiras, como
uma simples troca de estação no rádio, ou uma conversa com quem está no banco
do carona, ou pelo sono. Há ainda outra causa decorrente de fatores externos,
como um pedestre irresponsável ou um animal na pista. É impossível discorrer
sobre todos os motivos que podem levar a um acidente. No entanto, é inegável
que a mídia abstrai alguns motivos porque naturalmente estes convêm ser
abstraídos. Ou seria interessante para as grandes empresas que a venda de
celulares seja prejudicada por simplesmente distrair a atenção de pedestres? Ou
pegando ainda um exemplo mais rasteiro: alguém já parou para pensar com que
propósito estariam aqueles imensos outdoors
fazendo publicidade em locais que quase não passam pedestres há não ser ganhar
a atenção dos motoristas?
No entanto é mais fácil colocar toda
a culpa no álcool, a bola da vez; e para tentar reprimi-lo a ideia mais
brilhante em forma de lei: a Lei Seca.
Histórico
A
Lei Seca Norte Americana entrou em vigor no ano de 1920, através da 18ª emenda
à Constituição, que proibia a fabricação, o transporte, a comercialização,
exportação, importação e o consumo de bebidas alcoólicas dentro do país. A
medida visava acabar com a pobreza e a violência, pois a bebida era vista como
a responsável por todos os males que afligiam os EUA. A grande desculpa para o
governo implementar a Lei era poupar os cidadãos, protegê-los dos perigos do
álcool.
Encontramos
aí a grande coincidência, além do nome, que nos fez utilizar neste artigo uma
comparação entre as duas leis secas, separadas por quase duas décadas de
distância (se comparada à lei que está vigente no atual momento no Brasil, de
2012), mas cujo objetivo, teoricamente, é proteger os cidadãos.
No
Brasil, a primeira lei a condenar o uso de álcool no volante veio em 1967, com
o Código de Trânsito. Embriaguez ao volante (considerada a partir de seis
decigramas de substância etílica por litro de sangue) seria considerada uma
infração administrativa. É importante frisar que tal concentração só poderia
ser comprovada através do bafômetro ou de exames de sangue, devidamente
autorizados pelo motorista.
Apenas
em 2006 a
lei foi revista e sofreu uma alteração radical: não se fazia mais necessário
uma medida quantitativa da substância etílica, apenas a identificação de que o
motorista dirigia sob influência de bebidas alcoólicas. Em 2008, a lei foi editada,
desta vez no que toca as consequências aos cidadãos que a descumprem. Sob o
nome de lei seca, pregando a “tolerância zero” para a combinação volante mais álcool, o modelo falido, de
quantificar a quantidade de álcool por litro de sangue voltou à vigência.
Dois
anos depois, em 2010, a
fiscalização se intensificou muito, através das “blitzes” facilmente identificáveis por balões com os dizeres “Lei
Seca”, e no final de 2011 a
lei sofreu mais alterações. Ficou estabelecido que motoristas com nível de
álcool acima do permitido (0,1 mg/l de sangue) teriam que pagar multa, além de
ter o carro apreendido e perder a habilitação.
Além disso, acima de 0,3 mg por litro de sangue, o motorista poderia
pegar de seis meses a um ano de detenção. Em dezembro de 2012, a lei sofreu nova
alteração. O valor da multa aumentou consideravelmente, mas outra mudança
também chamou atenção: agora, o bafômetro não é o único meio de comprovar a
embriaguez. Nem o exame clínico. Um mero vídeo ou uma prova testemunhal são
considerados válidos para enquadrar um motorista como inapto a dirigir um
veículo por ter consumido bebida alcoólica. Este modelo é o que está vigente
hoje.
Outra
coincidência interessante entre as duas leis secas toca no aspecto religião. No
Brasil, o autor da lei é o deputado Hugo Leal (PSC-RJ). O partido do deputado é
um dos mais notáveis dentro da bancada evangélica no Congresso Nacional. Já nos
EUA, a Igreja teve forte influência para a proibição das drogas, sempre pautada
em princípios morais.
Por trás das boas
intenções
É
importante analisarmos as coisas a fundo e buscar entender as motivações por
trás dos panos, das boas intenções. Tanto no caso norte-americano quanto aqui
no Brasil, é possível identificar questões econômicas e políticas.
No
caso dos EUA, precisamos tomar como partido o forte nacionalismo presente no
país, principalmente naquela época (1920-1934). As pessoas que se beneficiavam
do comércio de bebidas alcoólicas eram, em sua grande maioria, imigrantes. A
cerveja, o vinho, o rum, ou seja, as bebidas que eram consumidas na época eram
típicas de outros países e consideradas como um mal, ou seja, um desvio que não
deveria estar presente na sociedade. Mais tarde, Durkheim desconstroi essa
teoria, como afirma Baratta:
“A teoria
estrutural-funcionalista de Durkheim e, depois, de Merton, rejeitaria o
princípio do bem e do mal: o desvio seria fenômeno normal em determinados
limites, funcional para o equilíbrio social e reforço do sentimento coletivo,
anormal apenas na hipótese de anomia, caracterizadas por desequilíbrios na
distribuição de meios legítimos para realizar metas culturais de sucesso e
bem-estar.” (BARATTA, 1999, p.10)
Por
conta das guerras que o país participou, fez-se necessário poupar diversos
produtos que eram matérias primas das bebidas. Os interesses dos donos das
fábricas sobressaiam frente ao governo, portanto, ambos queriam aumentar a
produtividade nas fábricas, e viam no álcool um obstáculo. Os proletários
faziam uso da bebida para fugir da realidade, uma prática comum em diferentes
países desde a revolução industrial.
Ainda
na questão do nacionalismo, o país possuía (como ainda possui) um medo tremendo
do chamado “antiamericanismo”. Com o fortalecimento da causa operária, os
partidos de esquerda começaram a se multiplicar, com a presença de inúmeros
imigrantes. O governo passou a implementar uma série de medidas para controlar
esse “antiamericanismo”, entre elas a Lei Seca.
Já
no caso brasileiro, é fácil perceber que um dos grandes objetivos do governo ao
instituir a lei seca foi a arrecadação. A multa, que em 2011 passou a ser
R$957,70 e agora é R$1915,30, gerou, apenas no primeiro dia da operação no
estado do Rio, mais de 135 mil reais, seguindo a premissa do sistema
capitalista de privilegiar a classe superior.
“Assim, a seleção
legal de bens e comportamentos lesivos instituiria as desigualdades simétricas:
de um lado, garante privilégios das classes superiores com a proteção de seus
interesses e imunização de seus comportamentos lesivos, ligados à acumulação capitalista;
de outro, promove a criminalização das classes inferiores, selecionando
comportamentos próprios desses segmentos sociais em tipos penais.” (BARATTA,
1999, p.15)
Segundo reportagem publicada em O Dia na última segunda-feira, 18,
em quatro anos de vigência da lei no estado do Rio, 1.075.566 motoristas foram parados nas blitzes, dos quais foram 204.563
multados. Colocando uma média de 980 reais a multa (sem considerar o
valor alterado, que é muito recente), o gigantesco número de motoristas
multados representa um ganho de mais de duzentos
milhões de reais, apenas no estado do Rio, em quatro anos. Divididos por mês,
representaria uma receita de mais de quatro milhões por mês.
Além disso, é importante citar que o
valor da multa foi alterado em meados de dezembro do ano passado, em plena
época de festas (natal, réveillon e, é claro, carnaval), onde os acidentes nas
estradas crescem consideravelmente e, junto com isso, a arrecadação do governo.
Não só o aumento aconteceu em uma época interessante, como a porcentagem de
aumento foi assustadora – mais de 100%.
Dados e Números
Acidentes
de trânsito são uma das maiores de causas de óbitos no Brasil. Segundo dados do
Ministério da Saúde, em 2010 mais de 43 mil pessoas morreram decorrentes de
acidentes de transporte, o que equivale a quase 110 pessoas por dia.
Foi
divulgado, em fevereiro deste ano, um estudo feito pelo Ministério da Saúde que mostra que uma em cada cinco vítimas de
trânsito atendidas nos prontos-socorros brasileiros ingeriram bebida alcoólica.
Nesse sentido, a Lei Seca aparece como excelente medida para
prevenir os acidentes fatais nas estradas brasileiras. Um exemplo é que logo
no ano de sua reformulação, 2008, a Lei Seca “tolerância zero” reduziu em 6,2%
o número de acidentes no trânsito em todo país, se comparado ao mesmo período
do ano anterior. A queda de óbitos foi ainda maior: redução de 7,4%.
O
Rio de Janeiro é o estado brasileiro que possui o título de campeão de
resultados. Em 2007, antes da Lei Seca, os números eram assustadores: 983
pessoas morreram apenas na capital do estado. Em 2009, já com a Operação,
implementada em março, esse número caiu para 676, ou seja, uma redução de mais
de 30% em dois anos.
No carnaval deste ano, 2013, com a
Lei Seca sendo a mais rigorosa de todos os tempos, os resultados também são
relevantes: nos três primeiros dias de folia, o número de mortes nas rodovias
federais caiu 25,4% em relação ao mesmo período de 2011, quando a multa ainda
era de R$955,00.
Credibilidade
Apesar
de os resultados parecerem ótimos, é necessário pensarmos na credibilidade
desta lei.
O
primeiro ponto a ser tocado é a relativa facilidade em burlar a blitz, pelo
menos no Rio de Janeiro. O microblog twitter
avisa aos seus 470 mil seguidores onde estarão os carros que fiscalizam
motoristas. Assim, já é de praxe nas saídas dos bares, restaurantes e boates
homens e mulheres pegarem seus smartphones
para, só depois de conferir o twitter
da Lei Seca, escolher seu trajeto. Algumas vezes, obviamente, não dá pra fugir e
o jeito é pegar um táxi.
Outro
ponto é a forma de seleção dos motoristas que vão ser parados. Baseados em que
os agentes da Lei Seca escolhem suas “vítimas” a serem fiscalizadas? No tipo do
carro, na “cara” do motorista, na quantidade de pessoas que estão sendo
transportadas? Tudo é muito nebuloso e sem grandes definições, o que nos faz
pensar que elas simplesmente não existem.
A
alteração na lei, em dezembro de 2012, abriu precedência para outra questão que
pode afetar a credibilidade. A possibilidade de um vídeo e/ou testemunho
servirem como prova. Dessa forma, o motorista se vê na palma da mão dos agentes
da Lei Seca, que podem chantageá-lo ou simplesmente forjar uma prova por alguma
razão. Além disso, aumenta-se consideravelmente a possibilidade de pagamentos
de suborno, prática que sabemos, é muito comum em todo país. Existe também a
questão do perigo de não saber de que formas o vídeo pode ser utilizado.
Insuficiência x
exagero?
Por conta de tudo que foi citado
acima, fica fácil assumir uma postura de que a lei seca brasileira é
insuficiente para dar conta da prevenção de acidentes no trânsito. No entanto,
é considerada uma das mais rigorosas do mundo. Por isso temos esse paradoxo: a
lei seca é insuficiente ou é “exagerada”?
Medir a quantidade de álcool no
sangue do indivíduo, assumir a premissa de que ele está embriagado e que tal
fato gerará determinadas reações em seu sistema nervoso, com determinadas
consequências para o trânsito, como tirar a vida de pessoas, é negar o que já é
comprovado há muito pela ciência: que cada organismo reage de maneira diferente
a situações diferentes, inclusive no que diz respeito às bebidas alcoólicas.
Mesmo
porque não há dúvidas de que existem outros fatores que podem causar acidentes
no trânsito. E aqui, não nos referimos somente a outras “drogas”. (Por drogas entende-se, segundo a definição
da medicina, todo tipo de substância capaz de alterar as funções de organismos
vivos). O próprio stress no trânsito, a desatenção, o uso do celular, do rádio,
da TV, a falta de fiscalização no veículo, as poucas horas de sono e outras
tantas coisas podem ser as causas dos acidentes que ocorrem nas rodovias cotidianamente.
Todos esses exemplos e muitos outros (uso de cocaína, maconha, heroína, etc.)
podem ou não alterar a atenção, o reflexo e a agilidade do motorista.
Apesar
disso, precisa-se levar em consideração que criar leis para prevenir todo e
qualquer tipo de acidente faria com que nosso Estado se tornasse cada vez mais
punitivo. Insistir na punição pode ser um erro, quando já está provado que ela
traz efeitos muitas vezes catastróficos.
O Proibicionismo
Pode-se considerar que o
proibicionismo teve sua origem nos Estados Unidos, em 1909, quando o consumo do
ópio foi proibido. A cocaína e a heroína
seguiram pelo mesmo caminho logo em 1914, e em 1919 foi aprovada a Lei
Seca.
Esta última foi considerada o maior
fracasso legislativo de todos os tempos. A proibição aumentou os bares
clandestinos e também criou os grandes chefes da máfia (como Al Capone).
Pode-se dizer que foi a partir dela que o crime organizado teve início. Isso
porque a lei foi ignorada por diferentes setores da sociedade, inclusive por
pessoas que antes não consumiam bebidas alcoólicas, mas que com a proibição
passaram a se sentir instigadas a consumir. Em 1933 o então presidente Franklin
Roosevelt reconheceu a ineficiência da lei e a aboliu e, assim, boa parte do
crime organizado norte americano foi á falência.
Mas as consequências da proibição
ultrapassaram fronteiras: países como Colômbia, Peru e Bolívia se tornaram a
casa de gigantescos grupos que traficavam drogas para abastecer o mercado norte
americano.
Aqui cabe retomar o que foi dito
quando fizemos o histórico da Lei Seca. Todas as medidas proibicionistas, tanto
nos EUA quanto no Brasil, tiveram um caráter de repressão às minorias,
principalmente imigrantes, negros e pobres.
Neste momento, discute-se em todo o
mundo a questão da legalização das drogas. Alguns países já avançaram na
discussão, outros já legalizaram a maconha, por exemplo. Aqui no Brasil, a
discussão ainda rasteja pautada em princípios morais – os mesmos que foram fundamentais
para a criação da lei seca nos EUA.
Já é comprovado que quem mais se beneficia com
a proibição das drogas é o traficante, e que esta é uma guerra perdida, pois o
ser humano sempre utilizou drogas e sempre vai criar maneiras de continuar utilizando.
Obviamente a discussão deste artigo não é sobre a liberação de drogas, mas é
importante pensar em como o Estado brasileiro controla a vida privada de seus
cidadãos, e que isto pode se mostrar eficaz num primeiro momento, mas depois o
indivíduo vai descobrir formas de continuar fazendo aquilo que quer, burlando a
lei e, assim, tornando-se um criminoso.
O problema não está na droga em si,
e, portanto, ela não pode nem deve ser considerada a causa dos males, incluso
os acidentes de trânsito. Os problemas relacionados à droga decorrem da
ausência de políticas públicas no campo da educação, saúde e igualdade social,
e no caso da Lei Seca não é diferente.
A guerra às drogas, em suas mais
diferentes esferas, já se mostrou ineficaz. O crime organizado, o “jeitinho”, o
suborno, o tráfico, etc. são consequências negativas de uma política restritiva
que visa prevenir o imprevisível – controlar o ser humano, suas ações e
emoções; prever o futuro, quantificar riscos e punir sem educar.
O papel da Mídia e a
Cobertura Midiática
Cabe a nós, jornalistas, questionar
o papel da mídia nesse processo. Analisando historicamente, ela foi uma das
principais responsáveis por legitimar essa política de proibição. As
propagandas veiculadas sempre “vilanizaram” as drogas e eram, e ainda são
responsáveis por criar e manter uma sensação de medo e insegurança constante na
população. É interessante, inclusive, observar a repetição de discursos: na
década de 20, a droga considerada destruidora de lares, responsável por criar
comportamentos violentos nos homens era a maconha. A heroína e cocaína também
já tiveram esse destaque. Agora não é difícil descobrir qual é o grande vilão:
o crack, sob os mesmos argumentos.
Baratta atenta a esse aspecto:
“(...) A teoria descreveria os
mecanismos de criminalização e estigmatização, mas não explicaria a realidade
social nem o significado do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e
da criminalização- justificando, portanto, a crítica de parecer a outra cara da
ideologia oficial.” (BARATTA, 1999, p.10)
Numa posição mais discreta,
encontramos a mesma mídia vangloriando a Lei Seca, colocando-a num patamar
acima de críticas e questionamentos, uma vez que seus ganhos foram muito
grandes (em termos de vida). Isto representa um grande impedimento para que não
só a nossa constituição, mas o debate possa avançar.
Além disso, o velho ponto do papel
que a mídia precisa cumprir na educação e conscientização acaba sendo deixado
de lado. Apesar de a presidente Dilma Rousseff ter sancionado a nova lei seca
em plena época de festas (dezembro de 2012), a medida não foi acompanhada de
uma campanha de conscientização, mesmo sendo comprovado que o número de
acidentes nas estradas cresce consideravelmente nesta época do ano.
Uma
das razões pode ser a ineficácia da propaganda de conscientização do trânsito.
De fato, tais propagandas nunca tiveram muito apelo perante a população. No
entanto, a ineficácia das propagandas de conscientização, se contrapõe com a
mesma ineficácia de colocar apenas no final dos grandes comerciais de cerveja o
“se beber não dirija”. Essa frase, que aparece como detalhe, é muito
insignificante perto do restante do comercial, onde homens e mulheres aparecem
felizes sempre com um copo de bebida alcoólica na mão, sendo esta indispensável
em qualquer ambiente onde o objetivo é se divertir.
Nesse sentido, a mídia, que não quer perder
seus grandes anunciantes, torna-se ainda mais cruel, afinal, morte é notícia,
acidente de carro é notícia. A redução de acidentes também é notícia, mas apenas
quando se tem uma causa conhecida, causa esta que a mídia consiga identificar e
explicar. A Lei Seca, portanto, foi a saída perfeita. Um prato cheio para a
mídia sensacionalista que começou a filmar e publicar famosos e não famosos se
recusando a fazer o teste do bafômetro, ou flagrados, ou fugitivos da blitz.
O Caso específico
A prova de que
leis preventivas não podem salvar o planeta dos acidentes de trânsito é o
recente caso noticiado pela mídia do jovem ciclista atropelado na Avenida
Paulista, em São Paulo. David Santos Sousa pedalava em direção ao trabalho
quando foi surpreendido por um carro, dirigido por outro jovem que voltava de
uma boate. A polícia que investigou o caso visitou a boate onde o responsável
pelo acidente esteve e ao ter acesso à conta paga pelo motorista Alex Siwek,
constatou que o mesmo havia ingerido álcool antes de dirigir.
O que mais chocou
nesse caso não foi o fato de um ciclista ter sido atropelado. Isso acontece
todos os dias. O grande diferencial foi que, com o impacto do acidente, o braço
de David foi amputado e Alex, desesperado, jogou o membro num córrego.
Tal fato foi
visto como crueldade, sangue frio e as hipóteses de que Alex não estaria em seu
estado normal começaram a ler levantadas por parte do público indignado.
Nessas horas a
indignação, somada à cobertura midiática, faz com que a população clame por
mais rigor, por medidas cada vez mais punitivas e restritivas, como prevê a
sociologia jurídica, segundo Baratta:
“(...) entram, por
exemplo, no campo da sociologia jurídica, o estudo da ação direta e indireta de
grupos de interesse na formação e aplicação do direito, como também a reação
social ao comportamento desviante, enquanto precede e integra, como controle
social não-institucional, o controle social do desvio, por meio do direito e
dos órgãos oficiais de sua aplicação.” (BARATTA, 1999,
p.22-23)
O povo e a mídia
tornam-se um coro que clama por justiça a qualquer custo, o que constitui uma
pressão não só sobre os policiais, os agentes da Lei Seca e o governo, mas
sobre a própria constituição que, apesar de ser avançada (não possui pena de
morte, por exemplo) ainda não é suficientemente inclusiva.
Conclusão
Assim
podemos refletir sobre a real eficácia de uma Lei que não consegue e jamais
conseguirá impedir os acidentes de trânsito em sua totalidade, tendo em vista
que é impossível realizar o teste do bafômetro com todas as pessoas que passam
pela blitz, ou ainda com todos os condutores de veículos que saem de uma
noitada, por exemplo.
O
iluminismo já havia trazido a premissa de que o indivíduo é um ser racional,
logo possui livre arbítrio para tomar decisões e assumir suas responsabilidades
decorrentes das mesmas. Nesse sentido, mesmo que o ideal é que haja esforço da
sociedade para prevenir o delito, (como pregava o filósofo Giandomenico
Romagnosi) visando o melhoramento das condições de vida social, as leis
preventivas não podem garantir que o delito não seja cometido. Barrata também
enfatiza isso em seu texto, explanando a posição de Francesco Carrara:
“O
delito, como ação, é para Carrara e para a Escola clássica um ente
juridicamente qualificado, possuidor de uma estrutura real e um significado
jurídico autônomo, que surge de um princípio por sua vez autônomo,
metafisicamente hipostasiado: o ato da livre vontade de um sujeito.” (BARATTA,
1999, p.38)
A
Lei Seca, portanto, é uma medida preventiva, que não leva em conta a
individualidade das pessoas e a forma como o álcool, em seus diferentes níveis,
atua em seus organismos. Determinada quantidade da substância (como, por
exemplo, 6mg por litro de sangue) não pressupõe determinada alteração no
cérebro, são apenas possibilidades.
Sem contar
que o pagamento de multa como forma de punir o transgressor não garante que o
mesmo não repita a ação. Prova disso é que existe a multa por reincidência
(que, inclusive, custa mais de três mil reais). Isso faz com que a lei seja
insuficiente para aqueles que cometem o crime e, ao mesmo tempo, traz sérios
problemas àqueles que não o cometem.
O sociólogo Émile Durkheim já dizia
que quanto mais restritiva uma sociedade é, mais ela é atrasada. Isso porque
uma sociedade muito desenvolvida possui uma consciência coletiva bem elaborada,
em que os indivíduos conseguem pensar no bem maior de maneira semelhante.
A
solução poderia ser a busca de uma conscientização no trânsito. Não somente
através das campanhas publicitárias, mas de um real processo de educação que a
lei preventiva não dá; ao contrário do que afirmavam a Escola Clássica e a
Escola Positivista em seus ideais do Princípio da finalidade ou da prevenção na
defesa social.
“A pena não tem, ou não tem somente,
a função de retribuir, mas a de prevenir o crime. Como sanção abstratamente
prevista pela lei, tem a função de criar uma justa e adequada contramotivação
ao comportamento criminoso. Como sanção concreta, exerce a função de
ressocializar o deliqüente.” (BARATTA, 1999, p.42)
Mas, conscientes de que esta é uma
medida de longo prazo, faz-se necessário pensar em algo que tenha eficácia mais
imediata, mas que ao mesmo tempo não entre tanto em conflito com o que foi dito
neste artigo. Para tanto, poderiam ser buscadas outras formas de avaliar o
motorista, que testassem reflexos e agilidade, que, como foi dito, podem ser
afetados por outros fatores, não necessariamente substâncias químicas.
Bibliografia:
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Revan, 1999.
SOUZA, Rainer.Lei
Seca dos EUA. Disponível em: < http://www.mundoeducacao.com.br/historia-america/lei-seca-dos-eua.htm>
Acesso em março de 2013.
MÖDERLER, Catrin. 1917: Apresentado o projeto da Lei Seca nos EUA. Disponível em:
< http://www.dw.de/1917-apresentado-o-projeto-da-lei-seca-nos-eua/a-319341
> Acesso em março de 2013.
Lei
Seca. Disponível em < http://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/lei-seca.htm>
Acesso em março de 2013.
O
que foi a Lei Seca. Disponível em <http://mundoestranho.abril.com.br/materia/o-que-foi-a-lei-seca>
Acesso em março de 2013.
MARQUES, André. A
Nova Lei Seca. Disponível em <http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2012/12/28/a-nova-lei-seca/>
Acesso em março de 2013.
Perfeito!
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