A menina Adrielly
dos Santos Vieira, de 10 anos, foi vítima de bala perdida na
noite do dia 24 de dezembro. Foi então levada ao Hospital Salgado Filho, onde
esperou durante 8h para ser atendida. Com a ausência do neurocirurgião
responsável pelo plantão na noite natalina, a menina foi transferida para o
Hospital Souza Aguiar, onde foi operada, mas não resistiu e morreu quatro dias
depois.
A mídia atualmente é o chamado 4º poder. E isso fica
bem claro nesse exemplo: desde a primeira vez que o caso foi noticiado, a culpa
recaiu sobre o médico.
E existem diversas formas de fazer isso. A escolha
de palavras, a ordem das frases, etc... são coisas que modificam completamente
o sentido do texto. Ao falar que “A menina Adrielly esperou 8 horas para ser
atendida e por isso morreu na noite do dia 24 de dezembro”, anula-se toda a
culpabilidade de outros fatores, e faz com que esta recaia apenas sobre o
médico. Quais são esses outros fatores?
1º) Em
momento algum foi falado da bala perdida, a causa inicial da morte da menina, uma vez que ela nem mesmo teria sido levada ao hospital se não tivesse sido
vítima da insegurança constante à que somos submetidos, principalmente pessoas
que vivem em áreas de risco. Talvez, mesmo se tivesse sido atendida
imediatamente, ainda assim morreria, afinal, foi um ferimento gravíssimo. Porque as investigações não vão nem
tocar nesse ponto? Simplesmente porque é “enxugar gelo”. Quando a polícia fala “vítima
de bala perdida”, já é justificável que não consigam encontrar o culpado. É
bala perdida, não é? Por isso, nem se toca nesse assunto. A polícia trabalha
com números, estatísticas. Pra ela, é mais interessante ter o médico preso do
que ninguém.
2º) Não
haver outro plantonista no hospital, no caso de o primeiro precisar faltar. É
um absurdo os hospitais terem apenas um neurocirurgião de plantão, sem
substitutos. É mais uma prova do sucateamento da saúde pública. E mais uma vez
isso não é levado em conta.
Esse sucateamento fica ainda mais evidente, na
entrevista com o médico Adão Gonçalves: “A minha insatisfação na verdade era com o sucateamento do hospital e,
principalmente, com a falta do número mínimo de neurocirurgiões, levando a que
eu fosse escalado para praticar cirurgias sem auxiliar capacitado. Se eu nunca
pratiquei cirurgias na clínica privada sem uma equipe completa, por que haveria
de praticá-las de forma precária na rede pública? O paciente da rede pública
merece tratamento pior que o da rede privada? Se essa precariedade prejudicar o
paciente, o responsável principal sempre será o cirurgião, e decidi não assumir
esse risco. O tipo de cirurgia que pratico é, por definição, demorada e
complexa. E se o médico tiver um mal súbito, quem completa a cirurgia? Não
tinha mais condições psicológicas para trabalhar dessa forma, sem nenhum tipo
de assistente ou estrutura. Desde a aposentadoria do meu colega de plantão no
final de setembro, vinha arguindo quanto à possibilidade de substituição dele
com o meu chefe de serviço, tanto pessoalmente como por telefone celular, e a
resposta era que não teríamos solução a curto prazo. Por último, exerci o cargo
de médico-neurocirurgião no Hospital Miguel Couto até 1994 e conheci a
burocracia e a demora para se conseguir a exoneração pelos trâmites normais,
sem falar do fato de que eu teria que continuar trabalhando no Hospital Salgado
Filho até que fosse confirmada a exoneração. Ou seja, continuar a fazer
justamente o que eu não sentia condições psicológicas e físicas de fazer e que
me levou a deixar o hospital.”
O médico reitera o principal
problema da rede pública, em especial do Salgado Filho: a falta de pessoal.
Também fala das condições de higiene e riscos de infecção, já que os pacientes
ficam muito próximos uns dos outros.
Ao deixar de focar
nesses dois pontos e, através de manchetes, aspas, e uso indevido de termos
(como “... fazendo com que a vítima morresse depois de 8 horas de espera”) a
mídia tira toda a culpa desses aspectos e faz com que esta recaia sobre uma
única pessoa: o médico, que, inclusive, alega que só foi saber que era o plantonista
responsável no dia seguinte.
O médico nos explica
que estava querendo ser demitido, e, por isso, havia faltado todos os plantões
do mês de dezembro, e que seu superior já estava avisado. Será que não é
hipocrisia de nossa parte afirmar que houve omissão de socorro? Me pergunto
quantos dos que apontam o dedo para este homem faltaram ou faltariam seus
trabalhos na noite de natal. E, ao que me parece, não foi apenas porque era
noite de natal, mas por uma causa maior. Aqui, reproduzo mais trecho da
entrevista: “Médicos são seres
humanos comuns, com problemas comuns e ocasionalmente faltam. Se as equipes
fossem adequadamente organizadas, com um número suficiente de profissionais,
essas faltas não teriam a menor consequência.”
Gostaria de deixar
claro que meu objetivo aqui não é defender o médico, mas tentar pensar num
sentido diferente do senso comum, que costuma se dar pelo meio mais simples. É
muito mais fácil acusar uma pessoa do que fazer uma investigação trabalhosa
sobre o sucateamento da saúde no Rio de Janeiro, ou sobre as balas perdidas nos
morros cariocas.
E como é um ciclo, a
população, após acompanhar essa enxurrada de notícias que coloca o médico, e apenas o médico, como responsável
pela morte da menina, fica com “sede de justiça”. Pede para que ele seja
indiciado, preso... e até morto. Basta ler os comentários nos sites de notícia.
A polícia, então, sofre uma pressão não apenas da mídia, mas da população
indignada. E por isso, tem mais uma razão para indiciar o médico.
E foi o que aconteceu: http://oglobo.globo.com/rio/caso-adrielly-policia-indicia-neurocirurgiao-por-omissao-de-socorro-7229870.
O neurocirurgião foi indiciado por omissão de socorro.
Aconselho ler a
entrevista completa, no site do O Globo: http://oglobo.globo.com/rio/nao-me-sinto-culpado-pelo-que-aconteceu-ela-diz-plantonista-sobre-morte-de-adrielly-7225865
Aí vem a falsa solução: privatizar. Fazer com que as pessoas trabalhem em uma carga horária maior e com um salário inferior.
ResponderExcluirPois é... As famosas OSs né? "Organizações Sociais". Belo nome, inclusive... tudo pra disfarçar a privatização.
ResponderExcluirMuito bom seu texto!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluirMuito bom o texto gabi, principalmente por se propor a nos levar a um contra ponto, numa sociedade que se diz tão plural, chega a ser bizarro o poder de certas correntes na construção do pensamento coletivo. Porque não escreve algo sobre as privatizações também?
ResponderExcluirPosso escrever simm :) obrigada pela sugestão =D
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